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4 Jan 2021
Acordo comercial Reino Unido-União Europeia em traços gerais

UM COMPROMISSO COMPLEXO E CONTINGENTE

“Consummatum est”: o Reino Unido (RU) já não faz parte da União Europeia (UE), nem do seu mercado interno e união aduaneira. Todo ele? Não, a Irlanda do Norte, uma das nações que integram o RU, continua a fazer parte, na prática, do mercado interno europeu.

Parece confuso, é confuso, e ilustra de forma lapidar a complexidade do “acordo de véspera de Natal”, como tem vindo a ser referido o acordo comercial que, obtido no dia 24 de dezembro de 2020, a uma semana do final do prazo, permitiu evitar o caos que resultaria de uma saída definitiva sem acordo.

Foi evitado o pior de todos os cenários, o que não significa que o resultado seja perfeito, muito pelo contrário. Este é um acordo complexo, é verdade, mas também ainda muito lacunar, contingente e subjetivo, com inúmeras incertezas e incógnitas, muitas matérias por decidir, objeto inevitável de negociações futuras.

E enquanto se continua a esmiuçar o texto do acordo, longo de milhares de páginas, e as partes procuram apresentá-lo à luz mais favorável possível, analistas tentam antecipar as suas consequências, deparando com a dificuldade que resulta da referida natureza, lacunar, contingente e subjetiva.

Certo é que, a partir de agora, o RU passa a ter, em relação à UE, o estatuto de Estado terceiro. O acordo celebrado é um instrumento de direito internacional, que vincula as partes, e prevê os mecanismos para a implementação e a resolução dos conflitos que dele possam emergir. Esse será sem dúvida um dos pontos-chave da relação futura entre o RU e a UE.

O TRATADO E O MERCADO

Começando pelos números: em 2019, 43% do total das exportações do Reino Unido (RU) foram para a União Europeia (UE), sendo 58% em produtos e 42% em serviços. E o RU importou da UE-27 52% do que necessita[i]. Mais importante ainda, o défice britânico no comércio dos produtos é cerca de € 108 mil milhões; como tem um superavit de € 20 mil milhões nos serviços, o défice comercial final, em 2019, foi de € 87 mil milhões. O total do comércio bilateral é de € 740 mil milhões.

Para Portugal, o RU é um mercado fundamental. Trata-se do nosso 4º cliente em termos de comércio de bens e serviços, 9,6% das exportações portuguesas (em 2017).

Ora, o Conselho da União Europeia aprovou no dia 29 de dezembro, por acordo unânime dos 27 Estados-membros (EM), a aplicação do Tratado Comercial e de Cooperação (TCC) com o RU a partir de 1 de janeiro de 2021. A aprovação é provisória até ao final de fevereiro e permite a entrada em vigor do acordo na pendência das decisões parlamentares necessárias, quer do Parlamento britânico (que o aprovou a 30 de dezembro), quer do Parlamento Europeu (PE), que só votará o acordo no ano que agora começa.

Haverá risco de rejeição pelos parlamentares europeus? É improvável, e só não é de considerar impossível pela margem de cautela exigível nestas questões (e por um prurido de consciência democrática). Qual então a necessidade de aguardar o parecer do PE para transformar o Tratado de provisório em definitivo? Por duas razões, uma jurídica (é obrigatório), outra da ordem dos valores democráticos. Não sabemos se chega para evitar algum fumo de hipocrisia, mas salva-se a Europa do caos de um não-acordo.

No dia 1 de janeiro de 2021, o RU abandonou em definitivo (será?) o mercado interno, a união aduaneira, as políticas europeias e os acordos internacionais da UE. Acaba-se a liberdade de circulação entre as duas margens do Canal da Mancha. Em contrapartida, foi celebrado um acordo de comércio livre sem precedentes, base para a cooperação futura. A própria UE, numa brochura sobre o TCC, o diz: “vai muito para além de um acordo de comércio livre tradicional e constitui uma base sólida para a preservação da nossa antiga amizade e para a cooperação futura”. Será assim?

O acordo é substancial e elaborado. Prevê liberdade de comércio dos produtos em geral, incluindo os produtos agrícolas, e facilita os procedimentos alfandegários pelo reconhecimento mútuo dos chamados “Operadores Económicos Autorizados”. Obriga ao cumprimento das regras de origem (de onde são verdadeiramente originários os produtos?), mas os exportadores podem auto-certificar a origem. E passa a haver controlos e declarações obrigatórias, para avaliar da conformidade dos produtos importados do RU com as especificações técnicas e regulatórias em matérias de saúde, segurança, direitos laborais e outros padrões europeus. Alguns produtos terão vida facilitada nessa comprovação, caso dos de baixo risco ou “de interesse mútuo”, como os automóveis, vinho, produtos orgânicos, farmacêuticas e químicos. 

A UE quis vincular para o futuro o RU aos seus padrões e regras em matéria regulatória, no respeito do chamado “level playing field” (que podemos designar “plataforma de igualdade” no comércio e na concorrência) relativo aos direitos sociais, exigências sanitárias e ambientais, ajudas de Estado e regras da concorrência em geral, um dos pontos-chave do acordo. Sem sucesso: ficou consagrado o reconhecimento da situação atual e a aceitação mútua dos padrões de cada uma das partes, uma cláusula referida como de paragem ou “standstill”. Contudo, alterações substanciais às regras aplicáveis e em vigor aquando da aplicação do TCC serão abordadas no âmbito da parceria e podem levar a respostas da parte que se considere lesada, como a imposição de taxas ou quotas ou até a suspensão de pontos específicos do acordo, desde que justificadas e proporcionais (ver mais abaixo).

Referidos no acordo e objeto de declarações políticas apensas ao TCC estão aspetos muito sensíveis, como o controlo dos subsídios (em que circunstâncias são as ajudas de Estado aceitáveis?) e os regimes fiscais. Neste caso, há uma espécie de acordo (quase tácito, dada a natureza vaga das disposições e declarações) no sentido de que as taxas não serão usadas como forma de discriminação; porém, os mecanismos de resolução de conflitos são pouco claros, sem prejuízo do que mais abaixo se refere. No fundo, as partes mantêm alguma margem (discricionária) em matéria de fiscalidade. E, quer no que respeita aos impostos, quer às ajudas de Estado e outras matérias, ainda há trabalho a fazer para tornar o acordo operacional e credível.

Um exemplo: em matéria sanitária e fitossanitária, sobre proteção da saúde humana, animais e plantas, os exportadores britânicos da agroindústria deverão respeitar as regras europeias e serão sujeitos a controlos nas fronteiras dos EM. O contrário também é verdadeiro. Não haverá, contudo, um princípio de reconhecimento mútuo das regras aplicáveis por cada Parte, pelo que a exportação terá sempre de ser baseada em documentos que comprovem o respeito das aplicadas no mercado de destino.

E há um acordo sobre o IVA, a recuperação de verbas relacionadas com taxas aduaneiras, cláusulas contra fraudes alfandegárias, erros administrativos, etc, num esforço notável de cooperação.

O TRATADO, OS SERVIÇOS E OS PROGRAMAS EUROPEUS

Se nos produtos haverá mercado livre, ainda que regulado, nos serviços a situação é outra. Os prestadores de serviços só beneficiarão de um tratamento não discriminatório se cumprirem as regras do país em que os oferecem, acabando o princípio do país de origem, ou cláusula do mercado interno, segundo a qual estão, em princípio, sujeitos à legislação do EM no qual se encontram estabelecidos e não às diferentes legislações dos países onde os seus serviços são prestados. Também cessa o reconhecimento mútuo de qualificações, ainda que possam no futuro ser estabelecidos regimes de Reconhecimento Mútuo de Qualificações Profissionais (através de acordos entre reguladores e representantes dos diferentes setores profissionais), e o chamado “passporting” (ver mais abaixo).

Numa nota mais positiva, mantém-se a liberdade das viagens de negócios de curta duração e as transferências temporárias de trabalhadores do mesmo grupo empresarial. Alguns setores ficam excluídos dos novos direitos: audiovisuais, serviços públicos, serviços de interesse geral e alguns casos relacionados com transportes.

Foi um desfecho surpreendente aquele que resultou num acordo limitado em matéria de serviços, particularmente os financeiros. A perda do “passporting” – o direito de uma empresa registada num EM de operar em qualquer país da União, aí se instalar ou oferecer serviços transfronteiriços sem precisar de outras autorizações – representa um enorme prejuízo para a indústria financeira britânica, e logo num setor económico em que o RU tem superavit na relação com a União. Mas atenção: uma declaração política anexa ao TCC reconhece a necessidade de prosseguir o diálogo nesta matéria, incluindo a possibilidade de celebrar um acordo de entendimento até março de 2021, que inclua cláusulas de “equivalência”, isto é, o reconhecimento dos critérios e regras mútuos. Que grau de precariedade ou de certeza poderá ter esse processo é o que falta ainda conhecer.

O acordo assegura as ligações por ar, terra e mar. No caso da aviação, o RU perde os direitos de tráfego que tinha no espaço aéreo europeu. No transporte terrestre, o trânsito é permitido desde que cumpridos padrões elevados de segurança e condições de trabalho. A concorrência entre operadores europeus e britânicos far-se-á numa “plataforma de igualdade” em matéria de direitos dos passageiros, segurança do transporte, proteção ambiental e outras. A gestão do espaço aéreo comum e a segurança do transporte aéreo serão objeto de cooperação.

O paradigma supremo do que seria uma separação sem acordo foi, sem dúvida, o bloqueio de centenas de camiões nos acessos ao porto de Dover, provocado pela nova estirpe da pandemia, um vislumbre daquilo que poderia ter sido: caos, quebra nos abastecimentos, dramas humanos, prejuízos económicos de monta.

O abastecimento energético é assegurado e os fluxos (através das interconectividades instaladas, de cabos elétricos e condutas de gás) continuarão a fluir. No plano das alterações climáticas, a cooperação também se mantém, com uma cláusula que permite suspender o acordo se alguma das partes incumprir os compromissos do Acordo de Paris.

E depois há o “pequeno pormenor” das pescas, que atirou a conclusão do acordo para a 23ª hora. O acesso às águas do RU por parte das frotas europeias será mantido por 5 anos e meio, com uma redução gradual e equilibrada das quotas (em quantidades já determinadas para os mais de 100 stocks distintos partilhados), fixando-se em 2026 a base para a determinação anual dos totais de captura e sua distribuição, que terá lugar a partir daí. De referir que o mesmo se aplica ao acesso de embarcações britânicas a águas europeias.

Um artigo do acordo prevê “Medidas compensatórias em caso de supressão ou redução do acesso” e está a merecer a atenção dos especialistas. Assim, se uma das partes notifica a outra da supressão ou redução do acesso entretanto determinado, esta pode “adotar medidas compensatórias compatíveis com o impacto económico e societal da alteração do nível e das condições de acesso às águas” (artigo FISH.9). É caso para dizer “muita faneca para pouco bacalhau” (sendo que nem um nem o outro são dominantes nas águas em disputa – a supor que os haja).

Finalmente, a UE aceitou a participação do RU nos programas europeus de inovação, investigação e espaço. Inclui o Horizonte Europa (sucessor do Horizonte 2020), o programa de investigação do Euratom, o ITER (instalação de testes de fusão), o Copernicus e os serviços de Vigilância de Satélites. Os britânicos pagarão uma contribuição, a determinar (não há almoços nem investigação grátis, pelos vistos). Por outro lado, continuam a participar na Agência Espacial Europeia, que não é uma organização da UE.

 O TRATADO E AS PESSOAS

No que respeita às pessoas, o acordo é interessante. Os europeus podem entrar no RU e os britânicos na UE, dispensando vistos, por períodos curtos de 90 dias (no espaço de 180). Existem medidas de salvaguarda da segurança social, relativas aos direitos dos cidadãos de um e outro lado que vivam ou trabalhem na UE ou no RU, e respeitando a acesso a pensões, cuidados de saúde, acidentes de trabalho ou benefícios de maternidade.

O Cartão Europeu de Seguro de Saúde continua válido e os britânicos passarão a dispor de um “UK Global Health Insurance Card” que lhes permite acesso a tratamento médico em países europeus aquando de uma estadia, nas mesmas condições dos nacionais respetivos (mas perdem esse direito noutros países europeus, como a Noruega, Islândia, Liechtenstein e Suíça).

Entretanto, o RU abandona o chamado Espaço Europeu de Liberdade, Segurança e Justiça e será um país terceiro em relação aos acordos de Schengen. Mas está prevista uma estrutura para cooperação judicial em matéria criminal, incluindo o compromisso de proteger e aplicar os direitos fundamentais determinados pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada no âmbito do Conselho da Europa (não confundir com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia).

O RU deixa de ter acesso direto e em tempo real às bases de dados europeias, como a importante base de dados de informações sobre segurança e gestão de fronteiras do Sistema de Informação de Schengen II. Está, contudo, prevista a troca de informação em matéria de dados de passageiros aéreos, registos criminais, DNA, impressões digitais e registo de veículos. O RU continuará a cooperar com a Europol e o Eurojust na luta contra o crime transfronteiriço, lavagem de dinheiro e terrorismo. Por outro lado, abandona o mecanismo do mandado europeu de detenção e entrega e, embora estejam previstos procedimentos para entrega de criminosos, não são idênticos, já que os países europeus e o RU podem recusar-se a cumpri-lo. Além disso, as partes comprometem-se a respeitar altos níveis de proteção de dados.

 O TRATADO, A GOVERNANÇA E A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

Um dos pontos fulcrais nas negociações foi o da governança do próprio TCC. Como operar, como resolver disputas, como garantir a aplicação das regras. É neste ponto que reside, na nossa opinião, uma das fraquezas do acordo, excessivamente contingente. Há um único instrumento de governança, o Conselho da Parceria (“Partnership Council”), composto por representantes das duas partes, em paridade, assistidos por comités especializados e grupos de trabalho. Encarregue de assegurar a execução do acordo, toma decisões vinculativas por consentimento mútuo.

Um mecanismo horizontal de resolução de conflitos, baseado num tribunal arbitral independente, decidirá os casos de desacordo, também com força vinculativa. Tal como o RU pretendia, o Tribunal de Justiça da UE não será tido nem achado na matérias.

E, finalmente, mecanismos de salvaguarda e execução (ou coação – “enforcement”), entram em ação: as partes podem reintroduzir quotas ou tarifas no setor afetado ou mesmo retaliar noutras áreas, em caso de incumprimento de decisão de um tribunal arbitral. Há até a hipótese de suspender ou revogar o acordo, na totalidade ou em parte, em caso de quebra de elementos essenciais como o respeito pelos valores fundamentais, as obrigações em matéria de clima ou a não proliferação de armas nucleares.

Importa salientar que os mecanismos de resolução de conflitos não são uniformes, havendo variações consoante os setores, com exceções e cláusulas especiais que farão decerto as delícias de peritos e advogados.

Em suma, não são de excluir momentos de futura tensão, novos braços de ferro, retaliações e contra-retaliações. Há inúmeras zonas cinzentas e acordos por concluir, são frequentes as referências a “reservas” relacionadas com áreas de competência mista entre os Estados membros e a União, tornando a determinação do acesso ao mercado e a regulação dependentes de distintas regras e leis nacionais. Pode haver secções inteiras do TCC que venham a soçobrar, não se revelando eficazes ou sendo rejeitadas pelas partes, por impossibilidade de consolidar procedimentos.

Mas talvez convenha encarar o acordo na sua multiplicidade e complexidade, podendo acontecer exatamente o oposto, isto é, uma crescente integração, com um efetivo respeito pelas regras mútuas e um alinhamento em quase todas as dimensões relevantes. Isso ou o seu contrário faz aumentar, afinal, a subjetividade de muitas soluções e o grau de contingência do acordado.

Só o futuro dirá.

Entretanto, é bom não esquecer, está em vigor desde janeiro de 2020 o Acordo de Saída, que regula nomeadamente a relação entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, com um sistema específico para as trocas de e para esta região do RU. E um acordo de última hora (31 de dezembro) entre as autoridades espanholas e o governo britânico prevê que Gibraltar continue a fazer parte do espaço Schengen de livre circulação (a agência europeia Frontex patrulhará os pontos de acesso ao “Rochedo” durante 4 anos).

Ah, é verdade: o Reino Unido trocou o Erasmus pelo Turing, que deverá ver a luz do dia algures no próximo verão. Promessas quebradas, expetativas frustradas.

 


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