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4 Mai 2020
COVID-19 e práticas restritivas da concorrência

Contexto

Nas últimas semanas têm-se multiplicado as declarações de autoridades de concorrência sobre a aplicação das regras de concorrência nas presentes circunstâncias excecionais. No dia 8 de abril, a Comissão Europeia (“Comissão”) adotou uma Comunicação sobre o Quadro temporário para a análise de práticas anti-trust na cooperação entre empresas em resposta a situações de emergência decorrentes do atual surto de COVID-19. Organizações que congregam autoridades de concorrência como a European Competition Network (“ECN”) e a International Competition Network (“ICN”) também emitiram declarações sobre a abordagem e as prioridades das autoridades de concorrência (ver aqui e aqui).

As autoridades reconhecem, num momento sem precedentes como o que vivemos, que as empresas enfrentam novos desafios extremamente exigentes e têm um papel crucial na ultrapassagem dos efeitos da crise provocada pela pandemia. Acresce que as mesmas empresas que têm de fazer face, por um lado, a uma queda abrupta na procura de alguns bens e serviços e, por outro, a um aumento exponencial da procura de outros bens, não controlam todos os fatores, que são, em larga medida, determinados pelas autoridades políticas com base em critérios de saúde pública.

A palavra de ordem é a continuidade da aplicação das regras de concorrência na sua plenitude, com especial enfoque em práticas de aproveitamento da situação atual, quer através de acordos com concorrentes, fornecedores e clientes (por exemplo, controlo do preço de revenda, troca de informações sensíveis relativas a preços ou capacidades de produção), quer de práticas consideradas abusivas (por exemplo, preços excessivos para produtos essenciais). A Autoridade da Concorrência (AdC), bem como as autoridades de países como Espanha, França, Grécia, Luxemburgo ou Reino Unido, anunciaram, a este respeito, que manterão uma aplicação rigorosa das regras de concorrência.

Com efeito, a 16 de março, a AdC afirmou, em comunicado, que continua alerta para práticas anticoncorrenciais que explorem a atual situação em detrimento das famílias e das empresas, dando especial destaque à combinação de preços ou à repartição de mercados, incluindo os de bens e serviços necessários à proteção da saúde. A AdC não deu, pois, indícios de “colocar em quarentena” a aplicação das normas de concorrência, afirmando, pelo contrário, que se mantém particularmente vigilante na deteção de eventuais abusos ou práticas anticoncorrenciais.

Em contrapartida, outras autoridades, nacionais ou europeias, anunciaram que as empresas podem contar com uma abordagem diferente das prioridades de aplicação do direito da concorrência e com uma atitude mais dialogante.

Quadro temporário da Comissão Europeia

No seu Quadro temporário de análise, a Comissão estabelece os principais critérios de avaliação de projetos de cooperação para enfrentar a escassez no abastecimento de produtos e serviços essenciais durante a pandemia e, muito em particular, admite a possibilidade de adotar as chamadas “cartas de conforto” sobre projetos de cooperação específica.

A Comissão foca o Quadro temporário em produtos para o setor da saúde, como medicamentos, mas parece legítimo supor que as diretrizes serão válidas para outro tipo de produtos, como os transportes ou a produção e distribuição de produtos alimentares.

Nomeadamente, a Comissão reconhece a necessidade de cooperação entre empresas de forma a garantir a oferta e a distribuição de produtos de escassa disponibilidade e assegura que, nas circunstâncias atuais, não intervirá ativamente contra medidas necessárias e temporárias que visem impedir a escassez de oferta. Entende, aliás, que esta cooperação pode ter diversos graus de intensidade e, como tal, suscitar diferentes tipos de preocupações no plano da sua compatibilidade com o direito da concorrência. As questões mais frequentes serão as relacionadas com a coordenação da produção ou da distribuição de bens e a troca de informação entre concorrentes.

Medidas de âmbito nacional

Idêntica abordagem foi adotada na declaração conjunta da ECN, que agrega as autoridades da concorrência dos Estados-Membros da UE.

Entre os diversos exemplos de medidas adotadas a nível nacional, destacamos:

- A autoridade da concorrência norueguesa concedeu uma isenção de aplicação, por três meses, das regras de concorrência às empresas do setor dos transportes (aéreo, marítimo e terrestre), viabilizando, assim, por exemplo, a colaboração na oferta de rotas, desta forma assegurando o transporte de pessoas e bens e garantindo o acesso a bens e serviços essenciais (mais informação aqui). 

- O Ministro alemão da Economia referiu publicamente que as empresas do setor do retalho alimentar poderão ter de cooperar de modo a assegurar o abastecimento dos cidadãos durante a crise. No mesmo sentido, o presidente da autoridade da concorrência alemã aludiu à flexibilidade das regras de concorrência, caso circunstâncias excecionais assim o exijam, disponibilizando-se para encetar conversações com os operadores económicos (mais informação aqui). Semelhante abordagem foi adotada pelas autoridades da concorrência da Finlândia e da República Checa (mais informação aqui, aqui e aqui).

- O Governo do Reino Unido aprovou legislação de emergência, de forma a permitir que as empresas do setor da saúde (mais informação aqui), retalho alimentar (mais informação aqui) e transportes (mais informação aqui) possam garantir o abastecimento de produtos essenciais. A alteração legislativa visa o aligeiramento temporário da aplicação das regras de concorrência, permitindo, entre outras medidas, a troca de informações, a partilha de staff, de infraestruturas e de dados sobre existências, bem como aquisições conjuntas e coordenação de horários de funcionamento. Acordos desta natureza deverão ser notificados à UK Competition and Markets Authority (“CMA”) (mais informação aqui e aqui).

O direito da concorrência não está em quarentena

Tendo em conta a legislação e os instrumentos de direito da concorrência disponíveis, as autoridades não aceitarão práticas de concertação de preços entre concorrentes, de alocação de clientes e mercados entre concorrentes ou de preços excessivos. 

Contudo, existem formas de cooperação que podem ser – com respeito pelas regras de uma sã concorrência e, nomeadamente se forem demonstrados ganhos de eficiência – aceites pelas autoridades, tais como a fixação de preços máximos, a colaboração em projetos de I&D, de compra conjunta, de caráter logístico ou de distribuição, a troca de informação não sensível, agregada e histórica entre empresas, diretamente ou através de associações de empresas.

É digno de nota que o facto de uma prática ser adotada ao abrigo de um “convite” ou “incentivo” de uma entidade pública não a torna automaticamente imune à aplicação das regras do direito da concorrência; só em situações específicas, como o caso de a empresa não ter qualquer margem de escolha da sua atuação, pode a empresa defender-se com base nestes argumentos. Tendo em conta que, no contexto da crise de COVID-19, vários governos têm ponderado ou mesmo adotado medidas de intervenção na economia, tais como a fixação de preços máximos, de volumes de produção ou de incentivos à cooperação entre empresas, os operadores económicos deverão analisar criticamente o impacto de tais medidas nos seus negócios, bem como identificar eventuais riscos ao nível do cumprimento das regras de concorrência.

Diálogo reforçado entre os operadores económicos e as autoridades

Para além de as autoridades, num esforço de transparência, poderem transmitir orientações públicas gerais sobre o tratamento a dar às práticas restritivas da concorrência durante esta crise, também tem havido, na prática, uma maior abertura a um diálogo mais estreito com as empresas.

Na UE e em Portugal não existe, desde 2003, um sistema de notificação de acordos ou outras práticas à Comissão Europeia ou à Autoridade da Concorrência. A responsabilidade de assegurar a compatibilidade das práticas das empresas (contratos, comunicações internas e externas, contactos mais ou menos formais, entre outras) com o direito da concorrência é das próprias empresas, sujeitas ao dever de autoavaliar a sua atuação antes de a colocar em prática, com a colaboração dos seus assessores jurídicos.

No entanto, em circunstâncias como as atuais, em que a certeza jurídica e a celeridade de atuação são cruciais, autoridades como a Comissão estão a permitir e até mesmo a incentivar o diálogo com as empresas para facilitar a adoção de práticas benéficas para os consumidores.

Um dos instrumentos para esse efeito é a adoção de “cartas de conforto”. Embora elas não tenham valor jurídico vinculativo e não dispensem a autoavaliação por parte das empresas ou associações de empresas, são essenciais para conferir alguma segurança jurídica, permitindo às empresas avançar com projetos necessários ao abastecimento durante a crise pandémica e à recuperação que se seguirá. A Direção-Geral da Concorrência da Comissão criou especialmente para o efeito um website (https://ec.europa. eu/competition/antitrust/coronavirus.html) e uma caixa de correio (COMP-COVID-ANTITRUST@ec.europa.eu) a que se poderá recorrer para obter orientações informais sobre determinadas iniciativas.

Em conclusão, o direito da concorrência mantém a sua plena vigência no que toca a práticas restritivas da concorrência e as autoridades responsáveis pela sua aplicação estão atentas e continuam a desenvolver a sua atividade. Qualquer prática que envolva cooperação com concorrentes - ainda que mediada por associações ou até mesmo por entidades públicas - ou o uso de poder de mercado deve ser cuidadosamente avaliada pelas empresas, com a colaboração de assessores jurídicos especializados em direito da concorrência. Em caso de dúvida, pode ser adequado contactar as autoridades de uma forma pró-ativa.


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