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21 Jul 2020
Conselho Europeu: da bazooka ao canhão

Na CVA seguimos a par e passo, noite(s) dentro, a evolução das negociações no seio do Conselho Europeu. 5 dias, 4 noites de negociações e um dos Conselhos mais longos (o maior de sempre? Nice, em dezembro de 2000, durou 90 horas, este terá ficado a escassos 40 minutos) e difíceis de sempre.

1,82 biliões de euros tem o pacote financeiro global para os próximos 7 anos. O Fundo de Recuperação e Resiliência (FRR), para ser usado nos primeiros anos, conta com 750 MM€ - 390 MM€ a fundo perdido -, o Quadro Financeiro Plurianual (QFP, o “orçamento” de longo prazo da UE) os restantes 1,074 biliões. E um inédito recurso aos mercados para financiar o FRR.

  1. O que estava em causa

Começamos por recordar que essas negociações tiveram um duplo objetivo:

Aprovar o quadro financeiro plurianual (QFP) da União Europeia para os próximos 7 anos, isto é, as verbas alocadas para aplicar nas distintas políticas europeias durante esse período (orçamento de longo prazo 2021-27). E o excecional FRR – teoricamente “one off” (para usar uma só vez) –, a que a Comissão europeia chamou “Next Generation Europe”.

Nesta newsletter especial CVA tentamos fazer um resumo rápido e crítico do que foram as discussões, dos resultados e do que podemos esperar no futuro imediato.

O âmago da discussão consistiu no plano de 750 mil milhões de euros destinados ao novo FRR. Desse valor, 500 mil milhões seriam a fundo perdido, 250 mil milhões sob a forma de empréstimos, para serem usados nos próximos anos. Com o reforço do orçamento de longo prazo, as verbas totais disponíveis passariam a ser de 1,83 biliões.

O FRR está ligado ao orçamento e as verbas disponíveis da “Next Generation EU” seriam investidas em 3 pilares: apoio aos Estados-membros, onde se concentra o grosso das verbas (560 MM€ do Mecanismo de Recuperação e Resiliência propriamente dito, sendo 310 MM€ de subsídios e 250 MM€ de empréstimos), embebido no “semestre europeu” e destinado a apoiar os Estados mais afetados; incentivos ao investimento privado, incluindo vários instrumentos e mecanismos; e resposta a crises futuras, reforçando a capacidade europeia na saúde, na proteção civil, na investigação e na ação externa, entre outros.

O financiamento deste plano será feito, por um lado, através do orçamento geral da UE e no âmbito das perspetivas de longo prazo e, por outro lado, da ida ao mercado por parte da Comissão, que aí obterá a maior parte das verbas necessárias ao referido FRR. É uma novidade absoluta, uma espécie de “eurobonds” com outro nome e uma configuração que visa evitar o “risco moral” dos incumpridores, cuja forma de pagamento futuro ainda tem de ser esclarecida completamente (nomeadamente com uma revisão dos fundos próprios da UE, agendada lá para 2024).

Os quatro países frugais, alcunha interessante aplicada a Holanda, Áustria, Suécia e Dinamarca (com visitas breves da Finlândia), rejeitaram a dimensão do pacote financeiro e o facto de a maior parte da verba ser atribuída como subsídio e não empréstimo (começaram por exigir zero em subsídios), e defenderam um direito de veto à sua utilização por países que não fizerem as necessárias reformas para evitar malbaratar recursos que todos terão de pagar. E os valores europeus – a célebre “rule of law” (o Estado de Direito, afinal) – seriam também condição para a atribuição das verbas.

Pelo caminho, alguns dos frugais, contribuintes líquidos, exigiram ainda que parte da sua contribuição para o orçamento da União (para os respetivos recursos próprios) lhes fosse devolvida – ou a devolução aumentada. São os célebres “rebates”, cuja “invenção” é britânica e vem dos anos 80 (“I want my money back”, de Margaret Thatcher – e conseguiu-o). É bom recordar que esse aumento significa obviamente um esforço suplementar dos restantes Estados-membros, alguns que terão de pagar mais, outros que receberão menos.

E Portugal? Em maio, foi calculado que o país receberia a fundo perdido 15,5 MM€ e um total de 26,3 MM€ se contabilizados o valor dos empréstimos (ao melhor juro, é bom salientar). E recordar que não se trata aqui do orçamento ordinário europeu, discutido no âmbito do QFP, o qual pode garantir ao nosso país verbas, também a fundo perdido (sobretudo fundos estruturais), na ordem dos 4MM€ anuais. 

  1. A discussão

Foram acesas e difíceis as negociações em Bruxelas. Quatro dias, três noites, uma pelo menos em branco, momentos de quase rutura, alguns murros na mesa, muita tensão. A certa altura parecia que dos lados dos “frugais” só havia exigências e nenhuma cedência, a não ser – sob a batuta, para alguns frágil (não temos essa opinião), do Presidente do Conselho Europeu, o belga Charles Michel – cedências permanentes e sucessivas por parte da maioria:

Os “frugais” queriam um “super-travão” para avaliar – e “travar” – o acesso ao FRR? Pois esse travão foi proposto (ainda que com pastilhas e discos “riscados”).

Os “frugais” exigiam menos subsídios e mais empréstimos? Seja.

Os “frugais” queriam a “rule of law” como condição de acesso? Vai-se tentar (tentou-se).

Os “frugais” pretendiam pagar menos para a União. Pois sim.

Na parte final da longa e dolorosa negociação, alguns dos “frugais” começaram a ceder, talvez satisfeitos com as cedências. Áustria e sobretudo Holanda, liderada esta por Marc Rutte – que tem eleições dentro de alguns meses – mantiveram-se renitentes, resistentes… mas acabaram também por dar luz verde ao acordo. Afinal, receberam muito mais do que era expectável.

Mas, por outro lado, a “Próxima Geração Europa” vê luz ao fundo deste escuro túnel provocado pelo COVID-19. Talvez não seja a “bazooka” que alguns apregoaram, mas será decerto um muito respeitável canhão. Em que consiste, então?

  1. O resultado

Ainda há muita coisa por “fechar”, muitas regras por definir, muitos procedimentos por especificar. Mas o caminho fez-se. Na nossa opinião nenhuma linha vermelha definitiva foi cruzada. As verbas continuam muito elevadas. O controlo será apesar de tudo limitado (e até é bom que exista, falando com franqueza).

- No total, o Fundo de Recuperação manteve os 750 MM€ propostos. 390 MM€ em subsídios, em vez dos 500 MM€ iniciais, 360 MM€ em empréstimos. O pacote total, que junta este Fundo ao orçamento plurianual para 7 anos, de 1,070 biliões €, deverá assim chegar aos 1,82 biliões €.

- Os cortes principais serão nas verbas inicialmente propostas para os programas centralizados, assentes no orçamento europeu, como o da saúde, Horizon (o programa de investigação europeu, redução já muito criticada), o Fundo de Transição Justa (para o ambiente), entre outros. Isto permite aos Estados salvaguardarem a maior parte dos respetivos planos nacionais, mas enfraquece a capacidade europeia em vários domínios relevantes.

- Quanto ao super-travão (resta saber como funcionará na prática), lembra velhas soluções europeias, mecanismos desenhados para não ser usados (tão antigos como o compromisso do Luxemburgo de 1966). Um plano nacional que desperte dúvidas a algum Estado europeu pode levar à suspensão da atribuição das verbas, pendente de análise por parte do Conselho Europeu. O mecanismo desvaloriza o papel da Comissão (que em todo o caso deverá dar o seu parecer), falta ainda clareza e pormenores sobre o seu funcionamento, mas era um ponto central das exigências dos “quatro” sem o qual nenhum acordo seria possível.

- E os “frugais” ainda vão receber mais cortes na sua contribuição para o orçamento europeu, isto é, terão os seus “rebates” aumentados.

-Quanto à “rule of law”, mais uma solução “à europeia”, fica na prática de fora a condicionalidade exigida à partida quanto ao acesso ao novo fundo, embora haja também um “aviso” aos possíveis prevaricadores, podendo o Conselho, através de decisão por maioria qualificada, tomar medidas contra essa prevaricação. Mas é ainda assunto para ulterior clarificação.

- Finalmente, os quatro países receberam um bónus suplementar em matéria de aumento da percentagem dos direitos aduaneiros que são receita dos Estados e não da União e que aumenta, em geral, para todos os países europeus, o que beneficia sobremaneira um país como a Holanda, que tem dos mais importantes portos no continente.

O resultado é bom? Ou mau?

É obviamente histórico, mas importa gerir bem as expectativas criadas junto das opiniões publicas europeias, de modo a travar desde já as críticas dos eurocéticos e anti-UE de muitos quadrantes políticos e ideológicos nacionais. Aliás, em Itália, Salvini apressou-se a condenar o acordo e aquilo que considera serem as condições associadas ao Fundo – que ainda ninguém conhece, nem parece estarem definidas como ele diz estarem.

Importa recordar que, sendo este o acordo possível e não havendo qualquer dúvida sobre as dificuldades em obtê-lo, a alternativa seria nada. Nenhum acordo, nenhuma verba a fundo perdido, empréstimos muito mais caros, um mercado em risco de fechar e o futuro muito mais negro – nenhuma “New Generation EU”. E a modalidade de obtenção do financiamento para esse programa através de emissão de dívida comum em nome da União por parte da Comissão é uma novidade absoluta – que, em teoria de aplicação única, uma vez criado, dificilmente, criado o precedente, poderá voltar a ser solução no futuro.

Talvez por isso tenha sido tão “cara” (as tais cedências).

E quanto a Portugal? Fala-se em 15,3 MM€ a fundo perdido. Uma redução pequena, de 200 milhões. Como é possível? Fontes públicas referem que os cortes à proposta inicial da Comissão se fazem sobretudo nos programas geridos centralmente, e não nos planos nacionais. A ver vamos… E já agora, recordar que ainda falta o financiamento habitual via orçamento da União, que anda na casa dos 4 MM€ mensais, o que significa que no longo prazo (7 anos) o nosso país poderá receber um grande total aproximado de (15,3+28) 43,3 MM€; isto sem contabilizar os empréstimos que Portugal queira contrair, em excelentes condições de mercado (porque obtidos com a garantia comum europeia).

Mesmo considerando que os 15,3 MM€ do FRR serão utilizados nos primeiros anos, o acesso a verbas a fundo perdido representa em média qualquer coisa como 6,2 MM€ anuais! À volta de 3% do produto todos os anos…

As lições tiradas relativamente ao que sucedeu, sendo prematuro retirá-las ainda a tinta não secou em Bruxelas, são simples: este processo torna muito complicada a tomada de decisões complexas e relevantes. É difícil tomá-las por unanimidade. E já agora, talvez valha a pena revisitar as regras europeias em matéria de fiscalidade comum e da manutenção de “paraísos fiscais” no território da União, que falseiam as regras da concorrência e deturpam o bom funcionamento do mercado interno.

O problema é saber como mudar essas regras, o que só pode ser feito por unanimidade.


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