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12 Mai 2020
Da emergência para a calamidade: mais perguntas do que respostas

A mudança do Estado de Emergência para a Situação de Calamidade teve lugar à meia-noite do dia 2 de maio – a nova Situação de Calamidade durará (pelo menos) até às 24 horas do próximo dia 17 de maio. A CVA responde hoje a nove perguntas sobre o significado da mudança e suas implicações jurídicas, em particular no que respeita aos Direitos dos Portugueses.

1. Desde quando estamos em situação excecional em resposta à pandemia?

Em 30 de janeiro, a OMS declarou “Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional” decorrente da COVID-19. Uma Pandemia foi declarada a 11 de março. Dois dias depois, a 13 de março, um despacho conjunto dos Ministros da Administração Interna e da Saúde declarou, em Portugal, a Situação de Alerta, abrangendo todo o território nacional e para vigorar até 9 de abril. Não durou, porém, tanto, pois a 19 de março entrou em vigor o Estado de Emergência, renovado sucessivamente em 3 e 18 de abril.

2. Mas de onde vêm estas figuras?

O Estado de Emergência é declarado nos termos do artigo 19º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e da Lei nº 44/86 de 30 de setembro. Já a Situação de Calamidade, tal como a Situação de Alerta, decorrem da Lei de Bases da Proteção Civil (nº 27/2006) de 3 de julho.

3. E em que se distingue Estado de Emergência de Situação de Calamidade?

O Estado de Emergência, que explicámos com pormenor na Newsletter nº1, é declarado pelo Presidente da República (PR) em caso de calamidade pública, após parecer favorável do Governo e aprovação da Assembleia da República (AR); determina a suspensão ou limitação parcial dos Direitos Fundamentais, na medida necessária para enfrentar a situação; aplica-se a parte ou a todo o território nacional e não pode durar mais de 15 dias, embora prorrogáveis. Essa suspensão de direitos só é possível em Estado de Emergência, ou então em Estado de Sítio, o nível mais grave; o Estado de Emergência confere certeza a essa suspensão e assegura a aceitação da sua legitimidade pelos cidadãos. Já a Situação de Calamidade é declarada pelo governo face ao risco ou à ocorrência de catástrofes ou ameaças sérias ao bem público ou à saúde pública. Refira-se ainda, como termo intermédio, a Situação de Contingência, entre o Alerta e a Calamidade, que nunca chegou a ser evocada na presente circunstância. As medidas, em todos os casos, devem ser adequadas e proporcionais ao perigo em causa, seja potencial ou atual.

4. Qual a diferença entre as Situações de Calamidade e de Alerta?

Representam distintos graus de resposta a “acidentes graves” ou “catástrofes”, definidos no artigo 3º da Lei nº 27/2006. Acidente grave é “um acontecimento inusitado com efeitos relativamente limitados no tempo e no espaço, suscetível de atingir as pessoas e outros seres vivos, os bens ou o ambiente”; catástrofe acontece quando os acidentes graves “possam provocar ou provoquem elevados prejuízos materiais e (ou) vítimas”. Os pressupostos da declaração das duas situações diferem na intensidade: a Situação de Alerta (decretada em agosto de 2019, aquando da greve dos motoristas de matérias perigosas) pode ser declarada quando, face à ocorrência ou iminência de ocorrência de algum ou alguns dos acontecimentos referidos no artigo 3.º, é reconhecida a necessidade de adotar medidas preventivas ou medidas especiais de reação à calamidade possível ou atual. A Situação de Calamidade, em vigor em Portugal desde o dia 3 de maio, pode ser declarada quando, face à ocorrência ou perigo de ocorrência de algum ou alguns dos acontecimentos referidos no artigo 3.º e à sua previsível intensidade, é necessário adotar medidas de carácter excecional para prevenir, reagir ou repor a normalidade das condições de vida nas áreas atingidas pelos seus efeitos. Quem declara o Alerta? O presidente da câmara respetivo na situação de âmbito inframunicipal; o Ministro da Administração Interna nos casos em que esse âmbito extravase o município - foi o que sucedeu em Ovar a 17 de março, ainda em Situação de Alerta, sob a forma de “quarentena geográfica” decretada pelo governo (MAI e Ministra da Saúde). Na Situação de Calamidade, compete ao Conselho de Ministros fazer a declaração sob forma de Resolução de Conselho de Ministros (RCM), ou, em caso de urgência, por despacho conjunto do MAI com o PM, convalidado por RCM posterior. Nas decisões não participam outros órgãos de soberania – nomeadamente PR e AR, ao contrário do que sucede com o Estado de Emergência.

5. E que medidas podem ser adotadas nos diferentes casos?

Só no Estado de Emergência ou no Estado de Sítio (prevê-o a Constituição) podem ser limitados ou suspensos os direitos e garantias constitucionalmente protegidos (constantes do Título II da CRP, artº 24º e segts). Alguns direitos, contudo, não são suscetíveis de suspensão em quaisquer circunstâncias - é o caso dos Direitos à Vida, à Integridade e Identidade pessoal, à Capacidade Civil e à Cidadania, da não Retroatividade da lei criminal, do Direito de Defesa dos arguidos e da liberdade de Consciência e de Religião; outros, contudo, podem sê-lo, como é o caso do Direito de deslocação e fixação dentro do território nacional ou o de emigrar, do Direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, da Liberdade de expressão e de informação. Mas apenas, repete-se, declarados que sejam Estado de Emergência ou Estado de Sítio. A declaração do PR que determina a entrada em vigor do Estado de Emergência deve obrigatoriamente indicar os direitos afetados e a natureza da suspensão ou a extensão da limitação, devendo as restrições ser claras e proporcionadas. Já na declaração da Situação de Calamidade, da competência do Governo, podem ser estabelecidas inúmeras medidas no âmbito da proteção civil – livre acesso à propriedade privada, requisição de bens ou serviços ou mobilização civil de pessoas com determinada finalidade concreta. Devem ser medidas concretas, específicas e pontuais, bem fundamentadas e, sobretudo, proporcionadas. Mas não podem limitar liberdades e garantias constitucionalmente tuteladas.

6. Porquê, se a Lei aplicável estabelece um âmbito material amplo no caso da Calamidade?

É certo que o artigo 22º da Lei de Bases da Proteção Civil prevê, na Situação de Calamidade e além das adotáveis na declaração de alerta e de contingência, medidas “especialmente determinadas pela natureza da ocorrência” (pressupondo razoável margem de discricionariedade), o estabelecimento de cercas sanitárias e de segurança (suscitando dúvidas a sua legalidade no âmbito da Situação de Alerta – vide caso de Ovar) e “limites ou condições à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos, nomeadamente através da sujeição a controlos coletivos para evitar a propagação de surtos epidémicos”; e ainda a racionalização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, o consumo de bens de primeira necessidade e, até, a mobilização civil de pessoas por períodos determinados. Permite ainda a requisição temporária de bens ou serviços em caso de urgência e de se verificar interesse público nacional. Também prevê a lei que a Situação de Calamidade é suficiente para permitir o acesso dos agentes de proteção civil à propriedade privada e à utilização dos respetivos recursos naturais ou energéticos. E estabelece, no artigo 23º, nº 2, que os atos jurídicos ou as operações materiais adotados se presumem “praticadas em estado de necessidade”. São medidas amplas, mas dificilmente pode aceitar-se que impliquem, para além da situação concreta e de forma específica, limitações permanentes ou prolongadas de direitos que a Constituição expressamente apenas permite que sejam restringidos através da declaração de um Estado de Sítio ou de Emergência. E a lei, por ampla que seja, não pode sobrepor-se à Constituição.

7. E como chegámos ao Estado de Emergência? Na forma e no conteúdo, correspondeu aos ditames legais?

O Estado de Emergência foi declarado por decreto presidencial de 18 de março de 2020 (nº 14-A/2020). Entrou em vigor no dia 19 e foi renovado por duas vezes, tendo-se concluído à meia-noite de 2 de maio de 2020; isto é, estivemos durante 46 dias num estado de suspensão e limitação de certos direitos fundamentais em resposta a uma calamidade pública. O Governo deu parecer favorável à declaração do Estado de Emergência e a Assembleia da República aprovou-o três vezes. Tal como a Constituição e a Lei obrigam, o decreto fundamentava a declaração – “(…) torna-se necessário reforçar a cobertura constitucional  a medidas mais abrangentes (…) para combater esta calamidade pública” -,  estabelecia uma duração de 15 dias e indicava os direitos parcialmente suspensos e os salvaguardados (o artigo 5º exclui expressamente o Direito à Vida, à Integridade pessoal, à Identidade pessoal, à Capacidade civil e à Cidadania, à Não retroatividade da lei criminal, à Defesa dos arguidos, Liberdade de consciência e religião, Liberdades de expressão e informação); além disso, significativamente (ver ponto seguinte), ratificava as medidas legislativas e administrativas adotadas, anterior ou posteriormente, “as quais dependam da declaração do Estado de Emergência” (artigo 7º). E que medidas seriam essas? Pois todas aquelas que, em condições normais, não poderiam ser tomadas sem violar a Constituição e os Direitos Fundamentais, salvaguardando o “estado de necessidade”, mas carecendo de uma rápida e adequada convolação.

8. Isso quer dizer que tinham sido tomadas medidas prévias à declaração do Estado de Emergência que dependiam dessa declaração para a sua legitimação? E por que razão?

O Estado de Alerta, em vigor antes do dia 18 de março, permitiu colocar em prontidão os meios da proteção civil e as forças de segurança e, nos termos do despacho que referimos no ponto 1, previu medidas de carácter excecional como a interdição de eventos com um número de pessoas superior a determinado limite, a suspensão do funcionamento de alguns restaurante e cafés, a permanente monitorização da situação e o dever de colaboração dos cidadãos com as ordens ou instruções dos agentes da segurança interna e proteção civil. Entre outras medidas então tomadas esteve a já referida cerca sanitária a Ovar. O governo também suspendeu a circulação de turistas e as viagens de lazer entre Portugal e Espanha a partir de 16 de março. Antes, já tomara outras medidas: a colocação em teletrabalho dos funcionários públicos; a suspensão das visitas a estabelecimento prisionais ao fim de semana; a 12 de março, suspendeu todas as atividades escolares presenciais; encerrou discotecas, reduziu a lotação máxima dos restaurantes, limitou o número de pessoas em centros comerciais e serviços públicos e proibiu o desembarque de passageiros de cruzeiros; a partir de 13 de março, já em alerta, intensificaram-se as medidas extraordinárias, fecharam-se museus e monumentos nacionais, proibiu-se o consumo de bebidas na via pública e a realização de eventos com mais de cem pessoas; foram suspensas as ligações aéreas de fora e para fora da União Europeia. A desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes representavam um crime sancionado nos termos da Lei de Bases da Proteção Civil. A declaração da Situação de Alerta representou, na altura, a resposta do Governo à pandemia e o PM alertou para a possibilidade de aumentar o grau de resposta – isto é, de passar ao Estado de Calamidade. Não o chegou a fazer, pois foi, entretanto, declarado o Estado de Emergência. Mas porque foram então tomadas medidas que a própria declaração do Estado de Emergência considerou necessitarem de ratificação e que muitos constitucionalistas reprovaram? A razão é simples e reside na necessidade e na urgência dessas medidas, numa situação nunca antes vivida e que requeria respostas rápidas, num cenário de implicações desconhecidas. Mas foi importante ter-se reconhecido a lacuna e procedido rapidamente, e a nosso ver bem, à sua correção.

9. Mas então a Situação de Calamidade permite medidas inconstitucionais? Passámos a viver em “Estado de inconstitucionalidade”, como dizem alguns juristas?

A controvérsia tem sido profunda e está longe de terminada. O que é certo, pelos termos da  resolução do Conselho de Ministros que declara a Situação de Calamidade – nº 33-A/2020, é que, na nova situação, pouco parece mudar em relação à situação anterior de Emergência. Talvez cessem algumas limitações aos direitos dos trabalhadores, como o Direito à greve, mas permanecem medidas que permitem suspender ou restringir direitos como a Liberdade de circulação ou a propriedade privada. Mantém-se, por exemplo, o confinamento para certas pessoas e o “dever de recolhimento domiciliário”; e é obrigatória a adoção do regime de teletrabalho “sempre que as funções em causa o permitam”, entre muitas outras medidas. São várias as dúvidas suscitadas por estas medidas neste enquadramento, desde logo quanto à sua compatibilidade com a Lei da Proteção Civil, no artigo 22º, citado. Será que as várias matérias sobre as quais a declaração de Calamidade pode dispor incluem a limitação ou restrição de liberdades constitucionalmente tuteladas? Os limites à circulação ou permanência de pessoas, por exemplo, podem entender-se genericamente ou, como escreve o Bastonário da Ordem dos Advogados, deveria tratar-se “de medidas específicas que estão muito longe de uma suspensão generalizada dos direitos fundamentais”? Na verdade, entendendo-se que a nova Situação de Calamidade permite, por exemplo, a limitação genérica do Direito de liberdade de circulação para além de situações pontuais, temporárias e territorialmente circunscritas, para mais num processo que dispensa autorização dos deputados e a intervenção do Presidente da República, o Estado de Emergência teria de facto sido supérfluo. Sem prejuízo, claro, da eventual inconstitucionalidade dessas medidas.

 


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