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1 Abr 2021
O Tribunal Constitucional alemão põe em causa o Plano de Recuperação e Resiliência

1. O Tribunal Constitucional alemão volta a atacar 

No dia 26 de março, 2.200 cidadãos alemães, tendo por porta-voz Bernd Luke, co-fundador e um dos três porta-vozes do partido eurocético “Alternativa para a Alemanha” (AfD) e antigo eurodeputado, apresentaram uma queixa no Tribunal Constitucional de Karlsruhe (“Bundesverfassungsgericht” ou “BverfG”) dirigida contra a aprovação, pelas instâncias constitucionais da República Federal, da Decisão dos Recursos Próprios da União Europeia (UE), aprovada em dezembro passado.

Essa Decisão permite à Comissão Europeia emitir obrigações nos mercados para financiar o programa “NextGenerationEU” (ou Plano de Recuperação e Resiliência, PRR), no valor de 750 mil milhões de euros. Conjuntamente com o orçamento de longo prazo da União – as perspetivas financeiras plurianuais -, constitui o maior programa de estímulos económicos alguma vez financiado pela União.

A Decisão aumenta o teto dos recursos próprios de que a UE pode dispor, permitindo acomodar a verba adicional obtida com a emissão prevista. Deve ser ratificada por todos os Estados-membros e, sem ela, a Comissão não poderá proceder à emissão das referidas obrigações. Isto é, sem ela não haverá PRR – e a recuperação será ainda mais longa e dolorosa.

Os subscritores da queixa alegam que a forma de financiamento do PRR viola a obrigação de a UE manter um orçamento equilibrado, e consideram a emissão prevista uma “violação flagrante do Tratado da UE”.  

O que está em causa é o artigo 311º do Tratado sobre o Funcionamento da EU (TFUE), que estabelece o seguinte, nos seus dois primeiros parágrafos:

“A União dota-se dos meios necessários para atingir os seus objetivos e realizar com êxito as suas políticas. O orçamento é integralmente financiado por recursos próprios, sem prejuízo de outras receitas”.  Os queixosos consideram que a emissão de dívida para financiar despesas do orçamento da União é ilícita e contrária ao referido artigo.

Por outro lado, a Decisão dos Recursos Próprios refere expressamente que “A fim de assumir o passivo relacionado com os fundos que se prevê obter mediante contração de empréstimos, é necessário um aumento extraordinário e temporário dos limites máximos dos recursos próprios. Por conseguinte, com a única finalidade de cobrir todos os passivos da União resultantes dos empréstimos por ela contraídos para fazer face às consequências da crise da COVID-19, o limite máximo das dotações de pagamento e o limite máximo das dotações de autorização deverão ser aumentados 0,6 pontos percentuais cada” (considerando 16).

A Comissão alega que o artigo 311º permite algum arbítrio na escolha dos meios e que o aumento dos recursos próprios através do financiamento nos mercados não representa um novo recurso próprio, mas um reforço adicional único (“one-off”). Neste caso, é relevante o terceiro parágrafo do artigo 311º TFUE:

“O Conselho, deliberando de acordo com um processo legislativo especial, por unanimidade e após consulta ao Parlamento Europeu, adota uma decisão que estabelece as disposições aplicáveis ao sistema de recursos próprios da União. Neste quadro, é possível criar novas categorias de recursos próprios ou revogar uma categoria existente. Essa decisão só entra em vigor após a sua aprovação pelos Estados-Membros, em conformidade com as respetivas normas constitucionais”.

No mesmo dia 26 de março, o Tribunal alemão aceitou a queixa e determinou que, antes do seu exame, Frank-Walter Steinmeier, Presidente da República Federal da Alemanha, não pode promulgar a Decisão. 

2. Nada de novo sob o sol

Esta intervenção do “BverfG” não é nem original, nem surpreendente. Há muito que os europeus se habituaram a tomadas de posição do Tribunal, cuja sede é em Karlsruhe, pondo em causa as competências das instâncias da União.

Ainda recentemente, em 5 de maio 2020, o Tribunal ordenou ao Bundesbank que interrompesse a participação no programa de compra de ativos do setor público em mercados secundários do Banco Central Europeu (BCE), caso este não demonstrasse que o programa era compatível com o Tratado da União Europeia (TUE).

A decisão causou na altura alguma comoção, não apenas por visar um instrumento importante de luta contra a recessão causada pela pandemia da Covid-19, mas pelo facto de o Tribunal alemão ter assumido, nessa como noutras decisões nos últimos anos, que qualquer que fosse a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre a legalidade do programa de compra de ativos do BCE (iniciado, sob outra forma, alguns anos antes), se reservava o direito de submeter a ação do BCE à sua fiscalização constitucional – isto é, de ter a última palavra.

Se, por um lado, estava em causa a saúde económica de uma União ameaçada por uma pandemia, como antes por uma crise económica severa (no pós-2008), por outro foram as próprias fundações da integração europeia a ser ameaçadas, pois a competência do TJUE para decidir em última instância sobre o direito da União é exclusiva, indelegável e impartilhável, como explicado em artigo anterior aqui publicado. (disponível aqui, ponto 3). Sem essa competência, a autonomia do direito da União e a sua aplicação efetiva e uniforme em todo o território europeia é impossível - e a integração europeia deixa de fazer sentido (idem).

Já não é a primeira, nem será a última vez que o Tribunal Constitucional alemão questiona – e testa – os limites das competências europeias e a relação entre a soberania alemã e a europeia. Na verdade, ele desempenhou um papel relevante – e até construtivo – no século passado, ao contribuir para importantes avanços jurisprudenciais do Tribunal de Justiça em matéria, nomeadamente, de direitos fundamentais, como explicamos no artigo antes citado (versão longa disponível aqui).

Neste sentido, decisões e acórdãos como Solange (acórdão de 29.5.1974, BverfG 37) ou Solange II (acórdão de 22.10.1986, BverfG 73), são bem conhecidos. No primeiro dos casos, o BverfG alertava para que, enquanto (“Solange”) a ordem jurídica comunitária não garantisse aos cidadãos alemães um nível de proteção dos seus direitos a equivalente os que lhes assegura a Lei Fundamental alemã, se reservaria o direito de proceder ao seu próprio controlo de constitucionalidade das normas europeias. Em Solange II, face à evolução da jurisprudência do TJUE, o Tribunal alemão aceitou renunciar ao seu próprio controlo de constitucionalidade, enquanto o TJUE assegurasse o nível adequado de proteção.

Mais tarde, ao examinar a constitucionalidade da lei de ratificação do Tratado de Maastricht, em 1992, o “BverfG” introduziu uma reserva à aceitação do primado da lei europeia, tornando-a dependente dos limites das disposições do Tratado aprovadas pela lei de ratificação. Em 30 de junho de 2009, apreciou a lei de ratificação do Tratado de Lisboa à luz da Lei Fundamental da República Federal, exigindo várias modificações e anunciando que continuaria a intervir para impedir o desrespeito manifesto pelo princípio dos poderes de atribuição conferidos às instituições da EU e qualquer violação do núcleo essencial da “identidade constitucional” da Lei Fundamental alemã.

A intervenção do ano passado, de 5 de maio 2020, vai ainda mais longe e representa, na nossa opinião, uma verdadeira intervenção ultra vires. O “BverfG” chama a si competências que são atribuídas em exclusivo pelos Tratados (e, portanto, por todos os Estados-membros que os assinaram) ao órgão judicial criado para dizer o direito neste espaço jurídico e político, o TJUE, ameaçando dessa forma os fundamentos de uma ordem jurídica de integração criada ao longo de 70 anos (conforme artigos acima citados).

3. E agora?

Agora, espera-se que o bom senso prevaleça e que uma decisão seja tomada rapidamente. Para não criar uma crise sobre outra crise e para que, à crise sanitária, agravada na Europa pelas críticas sobre a gestão pela Comissão europeia da compra de vacinas, não se junte uma crise económica gravíssima, o “BverfG” deverá dar uma resposta urgente, que permita ao Presidente alemão promulgar a Decisão dos Recursos Próprios da UE, entretanto já aprovada pelo Bundestag e pelo Bundesrat, as duas Câmaras do Parlamento alemão.

De certa forma, o Tribunal Constitucional Alemão tem-se vindo a erigir, em matéria europeia, em defensor de um nacionalismo constitucional estrito, incompatível com o compromisso que a Alemanha assumiu em matéria europeia. Trata-se afinal de saber se a última palavra sobre a legalidade de qualquer política europeia cabe ao TJEU ou é deixada aos Tribunais Constitucionais nacionais (ou, pior ainda, a um deles). O que é outra forma de dizer que se trata de saber se existe ou não uma ordem jurídica europeia verdadeiramente autónoma, que não dependa, em última instância, de uma interpretação - motivada por motivos internos, e inevitavelmente enviesada - de órgãos nacionais e se há ou não verdadeiro primado das normas europeias sobre as leis nacionais.

A razão de ser do primado é simples: sem ele, não haveria regras europeias comuns, nem mercado interno, ou sequer UE, tornados impossíveis se qualquer Estado pudesse livremente recusar-se a aplicar normas europeias que lhe desagradassem, escolhendo apenas o que lhe conviesse.

Urge clarificar de vez a questão das fronteiras entre a integridade constitucional da UE e a soberania dos Estados-membros. Com a crise das vacinas, ficou claro que a União tem competências limitadas em matéria de saúde. Já a crise económica provocada pela pandemia demonstra que a União não pode estar injustificadamente limitada, nas suas decisões e mobilização de recursos em prol do interesse comum, por regras de unanimidade ou bloqueios de tribunais nacionais. Isto é tanto mais verdade quanto se trata de situação urgentes, que requerem decisões rápidas no nível apropriado (como prevê o princípio da subsidiariedade) para contrariar ameaças imediatas à saúde e vida dos cidadãos europeus.

O local certo para dirimir e resolver as dúvidas que qualquer tribunal nacional possa ter sobre a legalidade do recurso aos mercados para financiar políticas europeias urgentes, e o aumento dos recursos próprios, só pode ser o TJUE, sob pena de a União Europeia se tornar inviável.

Uma vez mais, como tantas vezes no passado, o futuro a longo prazo da integração europeia vai-se decidir na resposta a curto prazo do Tribunal Constitucional alemão a uma objeção por si suscitada ou aceite, relativa à natureza autónoma e soberana do processo de integração europeia, assente na soberania dos Estados-membros e na vontade dos povos da Europa.

Uma vez mais, resta esperar, desejando que sabedoria, vontade política e integridade judicial permitam a tomada rápida da decisão correta.


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