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18 Jun 2021
A Revisão do Código dos Contratos Públicos e o Direito da União Europeia

1. Discriminação com base em critérios geográficos

No dia 20 de junho entra em vigor a Lei n.º 30/2021, que aprova medidas especiais de contratação pública e altera o Código dos Contratos Públicos (CCP).

Entre as alterações ao CCP que têm sido objeto de particular discussão e análise contam-se as que visam favorecer empresas que tenham a sua sede e atividade efetiva nas áreas territoriais do município ou da entidade intermunicipal em que os contratos serão executados. O que está em causa é saber se essas disposições infringem o direito da União Europeia (UE), por implicarem uma discriminação de determinadas empresas da UE relativamente a outras, apenas com base num critério geográfico.

Tal discriminação pode contrariar normas e princípios estruturantes do mercado único, como o da não-discriminação em razão da nacionalidade e o da igualdade de tratamento entre os nacionais dos diferentes Estados-Membros, assim como a obrigação de transparência deles decorrente. Pense-se sobretudo nas regras consagradas nos artigos 26.º, 34.º, 49.º e 56.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). Estas várias disposições visam, precisamente, impedir a criação de restrições ao exercício de atividades económicas por nacionais de um Estado-Membro noutros Estados-Membros. Neste quadro, os regimes jurídicos internos de contratação pública não podem constituir um entrave injustificado à liberdade de estabelecimento e à livre prestação de serviços.

O exemplo porventura mais evidente, nesta revisão do CCP, do risco de incumprimento do direito da UE é o novo artigo 54.º-A, n.º 1, alínea c), que prevê que as entidades adjudicantes possam reservar a possibilidade de ser candidato ou concorrente às “entidades com sede e atividade efetiva no território da entidade intermunicipal em que se localize a entidade adjudicante, em procedimentos promovidos por entidades intermunicipais, associações de autarquias locais, autarquias locais ou empresas locais para a formação de contratos de locação ou aquisição de bens móveis ou aquisição de serviços de uso corrente de valor inferior aos limiares referidos nas alíneas c) do n.º 3 ou b) do n.º 4 do artigo 474.º, consoante o caso”, ou seja € 221.000 (duzentos e vinte e um mil euros) ou € 443.000 (quatrocentos e quarenta e três mil euros).

Importa notar que as normas do TFUE acima referidas foram já repetidas vezes aplicadas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia para declarar o incumprimento do direito da UE em situações em que Estados-Membros aprovaram legislação interna que visava reservar determinados contratos a empresas com sede nesse Estado-Membro[1]. Tais normas são aplicáveis ainda que os procedimentos de contratação em causa, tendo em conta o seu valor, não estejam abrangidos pelo âmbito de aplicação das Diretivas sobre contratação pública[2].

2. Jurisprudência constante relativa a procedimentos de interesse transfronteiriço certo

Não obstante o que acaba de ser referido, deve ter-se em conta que as referidas disposições normativas do TFUE aplicam-se apenas a procedimentos de contratação pública que tenham “real interesse transfronteiriço” ou “interesse transfronteiriço certo”. De acordo com este critério, definido pelo Tribunal de Justiça, se o contrato em causa não for suscetível, pela sua dimensão e especificidades, de atrair empresas sedeadas noutros Estados-Membros, o direito da União não se aplica[3]. Para aferir do interesse transfronteiriço, há que atender à importância económica do contrato, conjugada com o local de execução, bem como às características técnicas do contrato ou dos serviços e produtos em causa.

A dificuldade na aplicação deste critério reside na sua indeterminação, que implica que só uma análise casuística dos procedimentos de contratação permita perceber se determinado contrato tem ou não “interesse transfronteiriço certo”. Vale isto por dizer que qualquer contrato que seja celebrado ao abrigo do artigo 54.º-A, n.º 1 al. c) do CCP, está sujeito, pelo menos, a uma incerteza relevante quanto à sua conformidade com o direito da UE.

Considerando a necessidade de definição de regras claras e precisas numa área tão sensível para o desenvolvimento económico e para a promoção de serviços públicos, como é a da contratação pública, parece-nos que o legislador português não andou bem ao autorizar entidades adjudicantes a celebrar contratos cujo regime de adjudicação pode contrariar princípios e normas fundamentais do direito da UE.

 3. Outras dúvidas sobre a compatibilidade com o direito europeu

Um outro exemplo revelador da ausência da devida atenção às regras europeias é a disposição do novo n.º 4 do artigo 113.º, que prevê que os limites legais impostos à contratação reiterada da mesma entidade não se apliquem quando (i) estejam em causa determinados contratos a celebrar por autarquias locais, (ii) a entidade em causa seja uma pessoa singular ou uma micro, pequena ou média empresa (PME) e (iii) tiver sede e atividade efetiva no território do concelho em que se localize a autarquia local, se (iv) a autarquia demonstrar que, nesse território, a entidade convidada é a única fornecedora do tipo de bens ou serviços a locar ou adquirir. Mais uma vez, a localização geográfica é um fator delimitador na seleção de possíveis adjudicatários, o que pode contrariar o direito da UE, se o contrato tiver interesse transfronteiriço certo.

A ausência de ponderação do princípio da não-discriminação e da igualdade de tratamento tem ainda outras manifestações nesta revisão do CCP, designadamente na avaliação das propostas apresentadas por concorrentes e candidatos (cfr. artigos 46.º, n.º 6 al e) e n.º 12 e 75.º, n.º 2 al. d)). Também nessas normas a referência à localização geográfica dos operadores económicos ou dos produtos em causa surge como fator de seleção de propostas. De novo, o legislador parece ignorar que o direito da UE baliza a sua margem de ação na definição das regras aplicáveis à contratação pública.

4. Soluções para proteção do tecido económico local

Ao contrário do que possa eventualmente pensar-se, o direito da UE não impede a criação de regras que permitam promover o tecido económico local. Há desde logo que salientar que a proteção de PME é um traço caracterizador das regras europeias aplicáveis à contratação pública, estando de resto esse desígnio expressamente previsto nos considerandos da Diretiva 2014/24. São, aliás, vários os seus afloramentos nas regras consagradas na referida Diretiva (veja-se, por ex., a previsão, como regime-regra, da divisão de contratos em lotes mais pequenos, prevista no artigo 46.º).

A discriminação positiva de PME, desde que proporcional, não é posta em causa pelo direito da UE, podendo favorecer empresas locais eficientes e que apresentem propostas concorrenciais. O que já não é aceitável é a inclusão da localização geográfica como critério de seleção, fazendo passar para segundo plano a qualidade intrínseca das propostas e o seu preço, que devem nortear qualquer procedimento adjudicatório de natureza pública e prevalecer sobre favoritismos automáticos de natureza regional ou local.

Decorre do exposto que uma boa compreensão das regras da UE - dos limites que impõem, mas também das oportunidades que geram - permite aos legisladores nacionais gizar soluções normativas eficazes, que favoreçam os agentes económicos locais, sem pôr em causa o respeito por tais regras.

As novas disposições do CCP que sejam suscetíveis de infringir o direito da UE ficam sujeitas ao escrutínio quer dos Tribunais portugueses, por via da reação de empresas que se considerem lesadas, quer da própria Comissão Europeia, que pode responsabilizar o Estado português por incumprimento de obrigações que lhe incumbem por força dos Tratados, nos termos dos artigos 258.º e 260º do TFUE.

Não seria por isso despicienda, nem que fosse por uma razão de prudência, uma reavaliação da Lei n.º 30/2021 no que respeita aos preceitos potencialmente criadores de problemas à luz do direito da UE, tendo em vista a aprovação de um novo diploma que a expurgue das normas em causa ou as altere.



[1] Veja-se, por todos, acórdão do Tribunal de Justiça de 3.6.1992, Comissão c. Itália, C-360/89, EU:C:1992:235.

[2] Veja-se, por todos, acórdão do Tribunal de Justiça de 16.4.2015, Enterprise Focused Solutions c Spitalul Județean, C‑278/14, EU:C:2015:228, n.° 16.

[3] Veja-se, por todos, acórdão do Tribunal de Justiça de 6.10.2016, C-318/15, Tecnoedi Costruzioni c Comune di Fossano, EU:C:2016:747, n ºs 19 e 20.


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