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24 Nov 2020
O que é o Regime de Condicionalidade para proteção do orçamento da União Europeia?

O impasse

A Polónia e a Hungria vetaram a aprovação do orçamento da União Europeia (UE) para os próximos 7 anos – o designado quadro financeiro plurianual (QFP). Ao mesmo tempo, também disseram não aprovar a decisão sobre o aumento dos recursos próprios, indispensável à obtenção, por parte da Comissão Europeia, dos € 750 mil milhões do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR - a “bazooka”) no mercado obrigacionista.

Recordamos os procedimentos necessários em cada caso:

O regulamento do QFP exige unanimidade no Conselho e aprovação pelo Parlamento Europeu (PE). A decisão relativa aos recursos próprios recebeu parecer positivo do PE, faltando a aprovação do Conselho, por unanimidade, e a ratificação por todos os Estados-membros, sem exceção.

A razão da oposição é o Regime de Condicionalidade (RC) para proteção do orçamento da UE (ver abaixo). A Eslovénia apoiou explicitamente Polónia e Hungria e outros países de leste parecem compreensivos. Mas a maioria dos deputados europeus e vários governos nacionais, em particular os nórdicos e o grupo dos chamados “frugais”, são irredutíveis na defesa da condicionalidade.

As consequências deste impasse são preocupantes: o extraordinário programa que é o PRR, uma revolução na forma de financiamento da UE num montante sem paralelo na História da União – símbolo de solidariedade, face às consequências económicas devastadoras da pandemia -, pode atrasar-se significativamente, prejudicando gravemente as economias mais afetadas e a Europa no seu todo.

Pior, no cenário mais pessimista, até ver inverosímil, pode nem ver a luz do dia, se os líderes europeus não conseguirem chegar a acordo.

Mas afinal do que trata o RC? Vamos ver isso já de seguida.

O acordo de 5 de novembro

O acordo a que deputados europeus e a presidência alemã chegaram na quinta-feira, 5 de novembro, que requer apenas maioria qualificada no Conselho para ser aprovado como regulamento da União, prevê a suspensão ou até o corte da atribuição de fundos europeus caso um Estado-membro viole as regras do Estado de direito (“rule of law”). Reza o artigo 1º do texto: “Este regulamento estabelece as regras necessárias para a proteção do orçamento da União em caso de violação dos princípios do Estado de direito nos Estados-membros”.

Ora a Hungria, sobretudo, mas também a Polónia (diz-se que por pressão de Viktor Orbán), reagiram e ameaçam vetar QFP e PRR. O PM polaco Mateusz Morawiecki comparou o mecanismo do Estado de direito à propaganda comunista. Em entrevista, a ministra da justiça húngara, Judit Varga, fundamentou a oposição com os seguintes argumentos: houve acordo sobre a condicionalidade na Cimeira de julho (que aprovou o PRR) e um novo mecanismo altera o Tratado, o que só é possível por unanimidade. As críticas ao país são uma pressão ideológica devido às posições húngaras sobre migração, multiculturalismo e o papel da família na sociedade. Trata-se, por isso, de chantagem.  

Também o primeiro-ministro Orbán referiu a esse propósito: “aqueles que protegem as suas fronteiras da migração não são considerados por Bruxelas Estados de direito”. O primeiro-ministro esloveno, por seu lado, considerou que a decisão sobre se há ou não violação do Estado de direito só pode caber a um tribunal (um argumento plausível).

E também pode colher a crítica ao regulamento com base na falta de critérios objetivos: “não há critérios e uma definição clara e objetiva dos princípios do Estado de direito. Não pode por isso ser usado como um instrumento para um mecanismo concreto sancionatório” (afirmação de Varga, segunda a qual “atualmente, Estado de direito é tudo aquilo de que «eles» não gostam a respeito da Hungria e da Polónia”).

Mas será mesmo assim? Não há critérios e definição clara dos objetivos? O artigo 2º do Regulamento proposto define da seguinte forma os conceitos envolvidos:

O Estado de direito refere-se aos valores da UE consagrados no artigo 2º do Tratado sobre o Funcionamento da UE. Inclui os princípios da legalidade, implicando um processo legislativo transparente, responsável, democrático e pluralista; certeza legal; proibição de arbitrariedade dos poderes executivos; proteção judicial efetiva por tribunais independentes e imparciais; separação de poderes; não discriminação e igualdade face à lei.

Pode ser indicativo da violação daqueles princípios:

Pôr em causa a independência do judiciário; não prevenir, corrigir ou sancionar decisões ilegais ou arbitrárias das autoridades públicas, incluindo as policiais; retenção de recursos financeiros ou humanos que afete o funcionamento dessas autoridades; não garantir a ausência de conflitos de interesses. Cabe ainda nessa categoria a limitação da disponibilidade e efetividade e de soluções legais e vias processuais para a tutela de direitos ameaçados, incluindo aí os obstáculos à execução dos julgamentos e as limitações impostas a uma investigação efetiva, à acusação ou à punição de violações da lei.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tem vindo, aliás, a clarificar, com vigor e rigor, as exigências inerentes ao respeito do Estado de Direito e à preservação da independência do judiciário, como o atestam acórdãos, ainda recentes, em processos como “Associação Sindical dos Juízes Portugueses” ou as ações por infração contra a Hungria e a Polónia.

A quebra desses princípios afeta ou põe seriamente em risco uma gestão financeira sólida e saudável (sound) do orçamento da União ou a proteção dos seus interesses financeiros de forma direta. Esse dano ou ameaça de dano podem respeitar a:

Um funcionamento inadequado das autoridades nacionais que executam o orçamento europeu; idem das autoridades responsáveis pelo controlo financeiro, supervisão e auditoria; dos serviços de investigação e procuradoria pública em matéria de fraude ou corrupção da lei europeia; e outras condições descritas no artigo 3º do regulamento acordado, entre as quais, curiosamente, a cooperação efetiva e atempada com o OLAF, órgão europeu de luta antifraude, e com a recém criada Procuradoria-geral europeia.

Na verdade, mais do que falta de objetividade das condições previstas, julgamos estar-se em presença de condições (talvez) demasiado amplas, nalguns casos de difícil apreciação (reter recursos? , funcionamento adequado de autoridades nacionais?).

Considerando existir motivo para tal, a Comissão notifica o Estado-membro em causa, o qual tem até 3 meses para reagir e propor, se assim o entender, medidas corretivas. A Comissão tem depois um mês (indicativo) para tomar uma decisão, podendo propor as medidas adequadas ao Conselho, que tem um mês para as adotar (excecionalmente até três meses). A decisão dos ministros reunidos em Conselho é tomada por maioria qualificada, podendo emendar a proposta da Comissão.

Os Estados objeto de medidas podem a qualquer momento corrigir a situação, pondo termo às sanções. E que sanções podem ser essas?

Desde logo, elas têm de ser proporcionais. Nos termos do artigo 4º do regulamento, devem ser determinadas tendo em conta o impacto real ou potencial das violações e, quanto possível, ser dirigidas às ações afetadas por essas violações. Como exemplo de sanções possíveis, refira-se a suspensão de pagamentos, a proibição de assumir novos compromissos, de receber empréstimos ou outras vantagens; a suspensão ou redução das vantagens garantidas por um instrumento do orçamento europeu; a suspensão da participação em programas comuns; a redução de pré-financiamentos.

São medidas demasiado estritas? Condições demasiado vagas? Ou exigentes? Prazos excessivamente curtos?

A verdade é que o PE, sem dúvida o responsável maior pela decisão tomada, quer evitar que se repitam situações como as dos processos ao abrigo do (célebre!) artigo 7º do Tratado da UE abertos contra a Hungria, em 2018, e a Polónia em 2017, que se arrastam indefinidamente. Essa é provavelmente a sede correta para defender o Estado de direito na Europa, mas os obstáculos políticos e institucionais que se lhe opõem levaram as instituições e a maioria dos Estados-membros a procurar novas soluções – as ações por incumprimento e o agora em discussão RC.

Que conclusões tirar? E que caminhos estão disponíveis para ultrapassar o impasse?

As soluções possíveis

De momento, as posições estão extremadas. Para a UE, o momento não podia ser pior, considerando a extrema necessidade da generalidade dos países europeus de dispor com urgência de apoios extraordinários para fazer face à crise económica provocada pela pandemia; sem falar do risco de a União entrar em 2021 no regime de duodécimos, quando cada euro conta ou pode contar na luta contra a recessão.

Orbán e o seu congénere polaco, a que agora se junta Janez Jansa, PM esloveno, prometem resistir. Há sinais de que não será bem assim. Do lado europeu, são muitos os irredutíveis. Também Portugal, com a sua presidência à vista (e bem gostaria de não “herdar” esta querela), defende, pela voz do primeiro-ministro, a irredutibilidade dos valores europeus da democracia, dos direitos humanos e do Estado de direito.

Como será então resolvido, se é que o vai ser, este impasse?

Há várias ideias em discussão.

Um clássico europeu é o esclarecimento do significado de certas normas ou propostas legislativas, através de uma declaração política para o efeito, que declare a natureza jurídica, e não meramente política, da condicionalidade.

Pode igualmente ser melhor esclarecido o alcance de algumas das previsões contidas no regulamento, como por exemplo os critérios para verificação da condicionalidade, as condições para aplicação das sanções ou a natureza destas. Ou então, tornar-se mais imperativo um mecanismo de oposição, previsto, que permite o recurso ao Conselho Europeu, em caso de dúvida sobre a proporcionalidade das medidas.

Pode a presidência alemã suavizar os termos do RC, ou as sanções, ainda que isso pareça difícil face à posição intransigente de alguns países e dos deputados europeus.

Talvez os primeiros-ministros polaco e húngaro recuem no veto absoluto, aceitem um compromisso ou algo em troca (reforço dos fundos, por exemplo). É possível, talvez mesmo provável.  

Outra via, que nos parece muito perigosa, é optar por excluir aqueles países do acesso ao PRR, optando por uma cooperação reforçada, ou até por um acordo intergovernamental que os exclua, sem pôr em causa a sua pertença à União. Já foi feito (recorde-se o chamado Tratado Orçamental de 2012), mas seria um processo moroso, cujas cicatrizes tarde ou nunca sarariam no tecido frágil da construção europeia.

Miguel Poiares Maduro, por seu lado, sugere a introdução de um mecanismo de apelo rápido ao Tribunal de Justiça da União Europeia, para eventual aplicação de sanções, que responderia à crítica segundo a qual a avaliação do cumprimento da rule of law é aferida judicial e não politicamente. Seria uma espécie de medida cautelar, complementada por um mecanismo interno de controlo pelos Estados para garantir que os fundos não são capturados por interesses económicos ou políticos ilegítimos.

Mecanismos de tipo cautelar já existem, em situações de urgência, para defesa do interesse público, no âmbito de ações por incumprimento movidas pela Comissão contra qualquer Estado-membro por violação do direito da União. No atual quadro dos Tratados, tais medidas provisórias só podem, aliás, ser usadas no quadro e como garantias de resultado final de um processo principal. E resta saber se permitiriam, nesse contexto processual, atingir os resultados visados.

Tratando-se, em contrapartida, de uma via de recurso inovadora, não se vê como possa ser consagrada sem alteração dos Tratados ou do Estatuto do Tribunal de Justiça da UE, o que, requerendo a unanimidade dos Estados-membros, a condena a uma aspiração adiada por muito tempo!

Ora, o tempo urge e os caminhos não são infinitos, mas a UE, as suas instituições e os responsáveis políticos dos Estados-membros devem encontrar soluções com celeridade.

Os cidadãos europeus dão sinais de grande cansaço e as promessas de julho não podem ficar adiadas eternamente.


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